Um olhar além das cores: inclusão e conscientização marcam o Dia Mundial do Daltonismo

A dificuldade em diferenciar cores pode parecer apenas um detalhe para muitos, mas para milhões de brasileiros representa um desafio cotidiano. Do trânsito às salas de aula, passando por escolhas profissionais e situações banais do dia a dia, o daltonismo ainda é uma condição invisível para grande parte da sociedade. No próximo 6 de setembro, quando se celebra o Dia Mundial do Daltonismo, a data chama atenção para a importância do diagnóstico precoce, da inclusão e da quebra de preconceitos.
Histórias que revelam os desafios
O confeiteiro Daniel Saito, 27 anos, convive com o daltonismo desde que nasceu. A condição, presente no avô materno e no irmão mais velho, marcou sua infância. “Desde pequeno sempre me colocavam para fazer testes e eu nunca conseguia acertar os números”, relembra.
Na escola, Daniel enfrentou momentos em que não conseguia acompanhar o conteúdo, especialmente quando professores usavam giz em cores que não distinguia. “Eu via que havia algo escrito no quadro, mas não conseguia identificar. Meus professores acabaram entendendo e evitavam usar aquela cor”, conta.
Apesar das limitações pontuais, ele afirma que a vida escolar não foi comprometida. O maior impacto vinha de tarefas ligadas à pintura. “Eu confundo tons mais claros, como azul, verde, cinza e rosa, além de variações em azul água e verde água, que costumo enxergar em cinza. A maior dificuldade é em relação ao contraste de uma cor com outra”, explica.
Na vida profissional, trabalhando com produção de doces finos e bombons artísticos, o daltonismo aparece em situações específicas. “Tenho um pouco de dificuldade em seguir a paleta pedida, então recorro à ajuda de outras pessoas para alcançar os tons exatos. Mas isso nunca me impediu de prestar meu serviço da melhor forma possível”, garante.
No cotidiano, prefere simplicidade para evitar contratempos. “Às vezes tenho dificuldade em combinar roupas — por isso, prefiro usar peças pretas ou brancas para evitar erros. Situações casuais também me surpreendem, como quando olhei um tênis e enxerguei azul e cinza, enquanto uma amiga insistia que era roxo e cinza. Fico meio bugado, mas levo de forma leve”, brinca.
Daniel também compartilha como sua percepção do mundo difere. “O arco-íris nunca foi colorido para mim. Eu sei que está lá, mas para mim é só uma luz. Quando muito, consigo ver amarelo, azul e um pouco de vermelho. Nunca achei lindo como as pessoas dizem, sempre achei sem graça”, relata. A experiência familiar reforça esse sentimento. “Meu avô, também daltônico, ganhou de presente um óculos especial para correção de cores. Foi emocionante. Ele disse que estava vendo cores que nunca tinha visto na vida. Para mim, esse relato mostra como a condição pode mudar completamente a forma de enxergar o mundo.”
O cirurgião-dentista Pedro Elias Moura Mendonça, 27 anos, descobriu o daltonismo ainda na infância, durante as primeiras atividades escolares. “No jardim de infância, percebi que não conseguia acertar as cores nos desenhos e sempre recorria a uma colega de sala para separar os lápis correspondentes. Eu me sentia incapaz por errar as cores que acreditava estar usando”, relembra.
Na vida adulta, o obstáculo foi maior quando tentou tirar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH). “O médico responsável identificou a condição e me submeteu a testes específicos. Nesse processo, descobri que confundo principalmente as cores primárias e secundárias. O médico me obrigou a decorar a ordem das cores no semáforo: vermelho, amarelo e verde. Só assim consegui a habilitação”, conta.
Ele também lamenta a falta de conscientização. “Muitas vezes as pessoas duvidam do problema ou acreditam que seja apenas uma forma de chamar atenção. Essa incompreensão pode ser ainda mais desafiadora em situações que exigem decisões rápidas, quando a certeza sobre as cores faz diferença”, desabafa.
No consultório, apesar de não ter sido um impeditivo, o daltonismo traz limitações práticas. “Restaurações dentárias, a escolha de materiais pela cor da embalagem e até a percepção de resultados em clareamentos são tarefas que exigem ainda mais cuidado. Não impactou de forma significativa, mas traz limitações no dia a dia do consultório”, reconhece.
O fotógrafo Anderson Marques, 35 anos, descobriu que era daltônico apenas aos 18, quando foi realizar o exame para tirar a CNH. “Na época da escola não me recordo de nenhum episódio que tenha me atrapalhado. No máximo quando comentava a cor de algo e alguém falava que não era tal cor. Tenho grande dificuldade, por exemplo, com o magenta, que muitas vezes enxergo em tons de cinza”, explica.
No trânsito de Brasília, a condição não o atrapalha, mas em outros contextos já trouxe desafios. “Já senti dificuldade de ter 100% de certeza se um sinal estava amarelo ou verde, mas nunca tive problema com o vermelho. De toda forma, me guio pela posição da luz no semáforo. Em cidades como Nova York e São Paulo, a grande quantidade de postes, propagandas luminosas e luzes próximas aos semáforos confundiam minha percepção”, relata.
Na vida profissional, o daltonismo se transformou em identidade artística. “Há quase 15 anos na fotografia, nunca foi um problema. Uso bastante as cores e contrastes nas minhas fotos. Às vezes peço a opinião da minha esposa para confirmar se as cores estão boas, mas considero que enxergo o mundo de uma forma que até valoriza o meu olhar fotográfico”, afirma.
Ele chegou a testar óculos especiais que prometem corrigir as cores, mas não se adaptou. “Comecei a sentir dor de cabeça e era muito estranho enxergar as cores daquela forma. Pode ser que meu cérebro não tenha se acostumado, e aquilo me gerou desconforto”, observa. Ainda assim, vê o daltonismo como parte essencial de sua trajetória. “Talvez, se eu enxergasse igual todo mundo, teria fotografado ou editado de outra forma ao longo da carreira. Nunca saberemos. O fato é que o daltonismo me trouxe um olhar singular para a fotografia.”
O que diz a ciência
A oftalmologista Isabela Porto, do CBV-Hospital de Olhos, explica que o daltonismo — também chamado de discromatopsia — é uma alteração genética da visão que afeta a forma como algumas cores são percebidas. “A deuteranomalia é quando há dificuldade em perceber o verde. Já a protanomalia é quando a dificuldade é com o vermelho. Existe ainda a tritanomalia, mais rara, que dificulta a diferenciação entre azul, amarelo e verde”, detalha.
Segundo a médica, a alteração está ligada ao cromossomo X, o que explica por que é mais frequente em homens. “Estima-se que 8% da população masculina e 0,5% da feminina apresentem algum grau de daltonismo no mundo. No Brasil, esses índices representam mais de 9 milhões de pessoas convivendo com a condição.”
O impacto vai além da visão. “Distinguir corretamente as cores do semáforo e das luzes de freio pode ser um desafio, mesmo com a ajuda da posição padronizada das luzes. Em transportes públicos, mapas e sinalizações muitas vezes usam apenas cores para diferenciar rotas, o que pode confundir. Até no consumo e no lazer, atividades simples como identificar a cor de uma embalagem, escolher frutas maduras ou distinguir times em um jogo podem se tornar complicadas”, afirma.
Apesar da relevância, as políticas públicas ainda deixam a desejar. “No Brasil e em muitos outros países, as ações de acessibilidade dão prioridade a deficiências físicas ou à baixa visão. O daltonismo costuma ser esquecido. Mas pequenas mudanças, como semáforos diferenciados por formas e mapas de transporte que usem padrões e texturas além das cores, já seriam capazes de ampliar a inclusão”, destaca.
Evento em Brasília
Em Brasília, o Boulevard Shopping promove no próximo sábado (6) uma tarde de conscientização com testes gratuitos de daltonismo, em parceria com a clínica Olhar Prime. A ação acontece das 14h às 17h, no Piso 2, e oferece exames com pranchas pseudoisocromáticas, como o teste de Ishihara, método de triagem para alterações de percepção das cores.
Durante a atividade, haverá óculos de simulação para que o público experimente como pessoas daltônicas enxergam determinadas combinações cromáticas. Crianças participarão de uma oficina de colorir com lápis sinalizados pelo sistema ColorADD, o “alfabeto das cores” que traduz cores em símbolos. Além disso, vitrines do shopping terão QR Codes para download do aplicativo ColorADD, que identifica cores pela câmera do celular.
Segundo os organizadores, a proposta é estimular o diagnóstico precoce, orientar famílias e ampliar a conscientização sobre inclusão.