Emergências com motociclistas adiam cirurgias complexas no SUS

Cirurgias eletivas de alta complexidade que só podem ser atendidas pelo Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into) no Sistema Único de Saúde (SUS) têm sido adiadas para que os recursos da unidade sejam direcionados para vítimas de colisões, atropelamentos e quedas envolvendo motocicletas. Na terceira reportagem da série Rota Perigosa: brasileiros se arriscam em motos por renda e mobilidade, a Agência Brasil mostra o impacto na saúde pública da epidemia de lesões sofridas sobre duas rodas.
Em 2024, 1.450 cirurgias eletivas de alta complexidade deixaram de ser realizadas no Into por causa das transferências de emergência. Um em cada cinco desses pacientes transferidos havia sofrido uma lesão grave em uma moto.
Segundo o instituto, quando uma cirurgia de emergência com trauma ortopédico chega à unidade, cinco pacientes que aguardavam na fila deixam de ser atendidos conforme o programado.
Referência em pesquisa e formação de profissionais especializados, o Into é apenas um dos pontos do SUS em que o impacto das lesões no trânsito de motociclistas tem causado preocupação.
Metade das internações
Segundo dados do Sistema de Informações Hospitalares do Ministério da Saúde apresentados na Conferência Nacional de Segurança no Trânsito no fim de julho, entre 2010 e 2023, 1,4 milhão de motociclistas foram internados após incidentes nas ruas brasileiras, o que corresponde a 57,2% de todas as internações associadas a lesões de trânsito no país.
A segunda categoria mais presente entre essas hospitalizações foi a de pedestres, com quase 1 milhão de casos a menos e uma fatia de 19,4% do total. Os motoristas e passageiros de automóvel, por sua vez, respondem por 188 mil casos e 7,4% do total.
As internações de motociclistas exigiram um gasto de mais de R$ 2 bilhões, ou 55,2% de tudo o que foi investido em gastos hospitalares de vítimas de trânsito.
Além disso, dados preliminares do Viva Inquérito 2024, realizado pelo Ministério da Saúde, indicam que 20,8% dos acidentados que chegavam a serviços de pronto atendimento eram trabalhadores de aplicativos.
A pesquisa contou com 42 mil entrevistados em unidades de pronto atendimento (UPAs) e outras que funcionam com portas abertas. A situação é mais grave em São Paulo e Belo Horizonte, onde o percentual chega a 31%.
Recorde de emergências
Neste ano, o cenário caminha para um recorde de atendimentos de vítimas do trânsito no Into. De janeiro a junho, o instituto calcula que precisou realizar cirurgias de alta complexidade em cinco pacientes graves por semana transferidos após sinistros de trânsito.
A diretora-geral do Into, Germana Lyra Bahr, conta que a transferência de pacientes de emergência, o que inclui as vítimas do trânsito, muda a programação de cirurgias eletivas, que são a missão do instituto na condição de unidade de referência do SUS e principal centro de formação e pesquisa em traumatologia e ortopedia do país.
“No ano passado, a gente fez 7 mil cirurgias o ano inteiro. E a gente recebeu 966 pacientes transferidos de unidades de urgência e emergência. É como se a gente parasse mais de um mês inteiro de atender os pacientes que estão aguardando na fila para atender emergências que vêm de outras unidades.”
Germana explica que uma cirurgia de urgência de vítimas do trânsito também tem um custo muito maior para o instituto do que uma eletiva, ainda que ambas sejam de alta complexidade. Um paciente que passa pela preparação para a cirurgia eletiva chega a ter o tempo de internação cinco vezes menor do que uma vítima de trânsito, que, em média, fica 25 dias internada e pode precisar de anos de reabilitação.
“Mas não é só o tempo, a gente tem muito gasto com antibiótico de alto custo, porque eles vêm, muitas vezes, infectados, porque sofrem lesões de rua, caem no asfalto.”
O aumento desses casos preocupa o Into e o sistema de saúde como um todo, porque já era esperado que o envelhecimento da população demandaria cada vez mais cuidados de ortopedia e traumatologia. A diretora do Into explica que a maior expectativa de vida da população não tem sido acompanhada pelo adiamento da manifestação de problemas de saúde mais associados à idade avançada, e o resultado tem sido um número cada vez maior de doenças crônicas.
“Na ortopedia, isso é muito importante. Gera osteoartrite, necessidade de próteses e outras questões. Se aumenta a demanda de pacientes para [cirurgia] eletiva e aumenta a demanda de pacientes transferidos por acidentes de trânsito, a gente não consegue dar conta de tudo. Nosso problema não é orçamentário, é físico. Não vai ter gente suficiente para dar conta.”
Tratamento para toda a vida
Desde que foi transferido para o Into, em janeiro de 2023, Eduardo Barbosa, de 39 anos, conta com os cuidados especializados do instituto em sua reabilitação. Uma vez por semana, ele passa o dia inteiro na unidade, para sessões de fisioterapia, terapia ocupacional e psicoterapia.
“Eu não sabia que existia um hospital no Rio de Janeiro com a qualidade que eu encontro aqui. A gente se sente muito acolhido, e isso é muito importante para quem passa por uma mudança tão radical de vida.”
Em julho de 2022, Eduardo comemorou a compra de uma moto nova para trabalhar ─ ele fazia as entregas, e seu companheiro preparava os lanches na lanchonete que administravam. Em um fim de semana de folga, porém, em setembro daquele ano, os dois bateram na lateral de uma carreta que, durante uma curva fechada, invadiu a pista em que desciam a Serra da Mantiqueira, em Resende (RJ).
Eduardo estava no carona, com capacete, jaqueta de couro e toda a proteção que é possível ter em uma moto. Mesmo assim, o choque com um veículo tão pesado causou as lesões tão graves que quase causaram tetraplegia e amputação do braço esquerdo.
“O meu acidente poderia ter sido pior se a gente tivesse sido imprudente e estivesse em alta velocidade. Como a gente estava devagar, o mais precioso Deus guardou, que foi a vida.”
Quando foi socorrido, Eduardo ficou 44 dias internado no Hospital Dona Lindu, em Paraíba do Sul (RJ). Ao longo desse período, ele passava por cirurgias toda segunda, quarta e sexta. Foram necessárias intervenções no rosto, na coluna, no ombro e no braço esquerdo, membro em que perdeu ossos, músculos e dois dedos, incluindo o polegar. Depois disso, foi transferido para o Into para a realização de cirurgias de alta complexidade ao longo de mais três dias de internação. Foram os profissionais do instituto que salvaram seu braço esquerdo da amputação.
“Eu estou há três anos [em tratamento] e ainda tenho muito mais anos pela frente. Tem pacientes com dez, 12 anos [de reabilitação] e que ainda estão em tratamento. Não é algo que eu possa falar que vou ter alta em dois anos. Pode ser que dure a vida inteira”, conta ele, que passou a morar com a mãe e ainda tem cinco cirurgias para fazer.
“Quando eu ganhar uma alta, se eu tiver uma oportunidade de fazer uma atividade que eu consiga exercer, eu pretendo voltar para o mercado de trabalho. Até para me sentir vivo, independentemente do acidente”, sonha ele, que conseguiu acesso ao auxílio-doença porque mantinha em dia as contribuições previdenciárias de seu registro de microempreendedor individual.
Qualidade de vida
Entre os cuidados da reabilitação, ele passa por sessões no Laboratório de Atividade da Vida Diária, onde reaprende tarefas do dia a dia, como varrer, cortar alimentos, dobrar roupas e arrumar a cama.
A terapeuta ocupacional Martha Menezes Lucas acompanha Eduardo e outros pacientes nessa recuperação e vê com preocupação a quantidade de motociclistas que precisam dessa assistência. Ela é especializada na recuperação de pessoas que sofreram lesões no plexo braquial, uma rede de nervos que passa pelo pescoço, ombros, braços e mãos.
“Noventa por cento dos meus pacientes são motociclistas, porque essa lesão de plexo acontece com muita facilidade nesses impactos de moto. E, ultimamente, também temos recebido pessoas que estavam em motos por aplicativo, que não tinham experiência em andar de moto e acabaram caindo.”
Martha conta que esses pacientes sofrem frequentemente com limitações graves e permanentes, que geram perda de qualidade de vida e condições laborais. Isso se torna mais dramático porque também é comum que sejam trabalhadores informais que não contribuem para a Previdência Social.
“Muitas vezes, era o principal mantenedor da casa. E, quando ele perde a capacidade de trabalhar e precisa de, no mínimo, dois ou três anos de reabilitação, fica dependendo do companheiro, da ajuda da mãe e do pai. E eles perdem muito também na capacidade de socializar. Quando você está com dor, em reabilitação e com menos recursos, você já não sai mais, não vê seus amigos, perde relacionamentos. É uma perda grande de qualidade de vida.”