Torcedor tem mais chance de ver bets do que a bola rolando no Campeonato Brasileiro

DANIEL MARIANI E PAULA SOPRANA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Se você tem a impressão de que acompanha mais anúncios de bets do que a bola em campo durante uma transmissão de futebol, está certo. A chance de ver uma propaganda de apostas nas camisetas dos jogadores, nas placas ao redor do gramado ou em inserções na TV é de 70% em um jogo do Campeonato Brasileiro, mais alta do que a possibilidade de ver a bola rolando.
Em média, 55% do tempo das transmissões mostram a bola, segundo levantamento do site 365scores (não relacionado à 365 bets) feito no ano passado. Nas primeiras rodadas de 2025, esse valor se manteve.
Isso significa que se você ligar a TV durante um jogo está sujeito a ver futebol, de fato, em 55% do tempo, mas acompanhará algum letreiro de bet piscando ou na camisa dos jogadores em 70% da transmissão.
Para chegar a essa conclusão, a Folha analisou 22 transmissões de jogos do Brasileiro de 2025 em diferentes canais Amazon Prime, Record, CazéTV, Sportv, Premiere, Record e Globo.
Para cada minuto, sorteou um frame (frame é uma imagem congelada dentro da sequência de imagens que compõem o vídeo), o que resultou em uma amostra aleatória de 2.023 frames, uma média de 101 por jogo.
As imagens foram então analisadas pelo Cloud Vision, um programa de inteligência artificial do Google que identifica todos os textos em uma imagem. A reportagem filtrou o resultado para termos comuns do meio, como bet, aposta, Cassino, Sorte, 365, Apostou, Pitaco e Alfa.
Dentre as partidas analisadas, o percentual de imagens com ao menos uma propaganda é alto:
Ultrapassou 80% do tempo nos jogos de Corinthians x Vasco e de Sport x Palmeiras, por exemplo.
Embora muitos torcedores pensem que estão com a atenção na bola, os estímulos visuais dos letreiros, as camisas e inserções exercem uma fixação subliminar no imaginário do consumidor. “As camisas do futebol brasileiro estão entre as principais ferramentas de exposição de uma marca”, afirma Ivan Martinho, professor de marketing esportivo na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).
Esse volume de publicidade de jogos de aposta encontra explicação na literatura científica: revisões de artigos acadêmicos sobre o tema indicam uma relação de dose-dependência, quanto maior a exposição a anúncios, maior a probabilidade de a pessoa apostar.
Outros estudos mostram que essa fixação é potencializada porque o esporte envolve identidades e afiliações emocionais profundas, fazendo com que o torcedor fique mais suscetível à mensagem de um patrocinador ligado ao seu time do coração.
As plataformas de bets são o principal propulsor da receita comercial dos clubes brasileiros, aquela ligada à publicidade e patrocínio. O Relatório Convocados, que examina a indústria do futebol, patrocinado pela gestora Galapagos, diz que as receitas comerciais dos times da Série A cresceram 29% em 2023 e 11% em 2024 sob influência das bets.
O valor estimado de patrocínio master contrato que dá o direito ao clube estampar o logo da marca na parte nobre do uniforme foi de R$ 579 milhões no ano passado, 28% das receitas comerciais (que respondem por cerca de 20% da receita de um clube). A previsão para 2025 é de R$ 988 milhões.
O futebol já aproveitou várias ondas de patrocínio, da Coca-Cola nos anos 1980 aos bancos e, depois, bancos digitais, mas em nenhuma delas o espectador foi tão exposto a um único segmento. Os 20 times da série A têm patrocínio de bets, sendo que em 18 deles elas são o principal contrato.
“As bets esportivas despertam a vontade de apostar durante o jogo e estão com bom orçamento de marketing. Não existe outro setor disposto a pagar o que elas pagam aos clubes hoje”, afirma Martinho. “São empresas de dois, três anos, com 200, 300 pessoas em operação; é difícil encontrar em outro setor da economia uma empresa que cresça numa velocidade de 2 dígitos.”
O fluxo de dinheiro para os clubes, entretanto, é ameaçado por pressão de setores como a comunidade médica, que alerta para os riscos à saúde mental das apostas. Mesmo em mercados maduros para as bets, como países da Europa, a discussão sobre regras que diminuam a visibilidade dessas propagandas é constante.
O Brasil regularizou as bets em janeiro de 2025, mas várias iniciativas legislativas pretendem diminuir o espaço de atuação das empresas, em especial no futebol. O Senado aprovou um projeto de lei que limita a propaganda de bets em estádios, estabelece horários de veiculação e proíbe a participação de atletas, artistas e influenciadores. O texto busca preservar crianças e pessoas com propensão ao vício. O texto passará pela Câmara dos Deputados.
Um estudo recente conduzido por pesquisadores da Universidade de Barcelona mostra que as apostas “in-play” (feitas durante o jogo) são, por definição, impulsivas. As oportunidades surgem e desaparecem em segundos, o que pressiona o espectador a agir no calor da emoção, criando um estímulo intenso para quem já tem predisposição.
Outro estudo semelhante realizado no Canadá constatou que cerca de 22% do tempo de transmissão de jogos de hóquei no gelo e basquete continham referências a apostas um número considerado alarmante por especialistas, mas que representa menos de um terço da exposição encontrada pela Folha no futebol brasileiro.
“É simples, se a pessoa tem vontade de beber o dia inteiro e recebe a informação a toda hora no seu cérebro de que aquela bebida é gostosa e que vai matar a sede, ela vai beber. No caso das apostas é muito pior, porque o celular está na mão. A pessoa vai jogar”, diz Antonio Geraldo da Silva, psiquiatra que preside a Associação Brasileira de Psiquiatria.
O vício em jogo aciona o cérebro de forma semelhante ao álcool e ao tabaco. A Organização Mundial da Saúde compara o impacto do transtorno de jogo ao gerado pela depressão ou pelo vício em álcool.
“A gente não percebeu nenhuma diferença ao tratar as pessoas após a regulamentação. Havia centenas de sites de aposta antes, depois de janeiro viraram 163, mas o número de pacientes não diminuiu”, diz Mirella Mariani, psicóloga do Programa de Transtornos do Impulso do IPq (Instituto de Psiquiatria do HC), o maior centro de referência para tratamentos do tipo.
Segundo ela, a fila de atendimentos no ambulatório cresceu quase 10 vezes nos últimos cinco anos. Análise da Folha, de maio de 2024, indicou uma explosão na procura por atendimentos relativos a transtornos psiquiátricos no SUS, em especial entre adolescentes.
Para a psicóloga, a propaganda deveria ser controlada para evitar a indução de crianças e jovens. “Os pais e as escolas ainda precisam entender que existe um transtorno relacionado ao jogo. Assim como o pai não chama a criança para beber uma cachacinha ou fumar um cigarro, não deve chamar para apostar, as coisas estão no mesmo campo.”
Mesmo com a proibição a menores, os adolescentes de 14 a 17 anos representam 4% dos apostadores no país. Desses, 84,1% utilizam plataformas online, e 55,4% apresentam risco de desenvolver transtorno do jogo, índice superior aos 37,7% observados em adultos, de acordo com levantamento sobre o uso de álcool e drogas da Unifesp em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas.
Plínio Lemos Jorge, presidente da Associação Nacional dos Jogos e Loterias, afirma em nota que a associação tem feito campanhas nas redes sociais para educar sobre “a função principal dos jogos online: diversão e não um meio de ganhar dinheiro ou fonte de renda”.
Ele é contrário ao projeto aprovado no Senado porque diz que a propaganda hoje diferencia casas legalizadas de outras, e que países como Espanha e Itália adotaram restrições à publicidade, mas recuaram diante da falta de aplicabilidade das medidas.
METODOLOGIA
A reportagem analisou 22 transmissões do Brasileiro de 2025 na Amazon Prime, Record, CazéTV, Sportv Premier, Record e Globo. Sorteou um frame para cada minuto, gerando uma amostra de 2.023 imagens, uma média de 101 por jogo.
Os frames foram analisadas pelo Cloud Vision, um programa de inteligência artificial do Google que identifica textos em uma imagem. Foram filtrados os resultados para termos como bet, aposta, Cassino, Sorte, 365, Apostou, Pitaco e Alfa.
A metodologia subestima o número de propagandas porque às vezes o programa não lê corretamente a mensagem ou porque alguns frames mostram somente o logotipo. A análise contempla só os minutos de jogo, sem intervalos ou momentos pós-partida.
A Folha considerou propaganda cada vez que um texto distinto foi identificado. Duas placas com Alpha são duas propagandas, por exemplo. A análise também não incluiu uma transmissão patrocinada pela Betano porque nela o patrocínio da marca é constante na tela.
O dado sobre tempo de bola rolando vem da 365Scores, que dispara um relógio sempre que a bola entra em jogo. Já a análise da da reportagem é amostral, mas com um banco representativo de 101 imagens, em média, por jogo. O código para a análise dos dados está público.